A História da Foto Que Mostrou a AIDS Para o Mundo
06/12/2010 - | FOTOGRAFIA, PUBLICIDADE
Em novembro de 1990, a hoje extinta revista norte-americana Life publicou uma foto (acima) de um jovem, David Kirby, de 32 anos, cercado por membros de sua família angustiada ante o seu último suspiro. Seu frágil corpo mostrava pela primeira vez ao público as devastadoras sequelas daAIDS. Seu olhar congelado estava fixo em algo ou alguém muito distante deste mundo. A imagem assustadora do falecimento de Kirby, registrada por uma estudante que fazia pós-graduação de jornalismo, Therese Frare, tornou-se a imagem símbolo da epidemia do HIV/AIDS, que já havia infectado silenciosamente 12 milhões de pessoas.
Hoje, 20 anos depois que a sua foto ajudou a transformar a percepção pública sobre a doença, Frare deu uma longa entrevista ao site da Life, onde falou sobre essa imagem icônica e responsável por uma polêmica internacional, quando foi utilizada, em 1992, no anúncio da United Colors of Benetton. O site também publica outras fotos inéditas, feitas antes e depois da morte de David Kirby. São imagens indeléveis, de partir o coração, que revelam a história oculta de uma das maiores tragédias do século 20.
Os últimos dias. David Kirby era um ativista pró-direitos dos aidéticos, que nasceu e cresceu em uma pequena cidade de Ohio. No final de 1980, quando soube que tinha contraído o vírus HIV, morava no estado da Califórnia e tinha se afastado da família. Então, entrou em contato com seus pais e perguntou se poderia voltar para casa, pois queria morrer entre os seus. Os Kirbys saudaram a volta do filho.
A sentinela. “Comecei a pós-graduação na Universidade de Ohio, Athens, em janeiro de 1990”, diz Frare, que agora trabalha como fotógrafa profissional em Seattle. “Imediatamente, me tornei voluntária no Pater Noster House, um hospital especializado em tratar pacientes aidéticos, emColumbus, a 50 quilômetros de Athens. Em seguida, comecei a fotografar os funcionários, e pessoas maravilhosas como Peta (acima), que foi o voluntário que cuidou de David.” A famosa foto de David Kirby em seu leito de morte recebeu muitos elogios – ganhou o prêmio World Press Photoem 1991 –, mas ele faleceu em abril de 1990, um mês depois de Frare começar a fotografar no hospital.
Tocando as mãos. Acima, uma enfermeira do Pater Noster House segura as mãos de Kirby um pouco antes de seu falecimento. A foto de Therese Frare, que foi elogiada e premiada quando publicada pela revista Life, só ganhou notoriedade dois anos depois, quando a Benetton utilizou uma versão colorida da foto em uma provocativa campanha publicitária. Indivíduos e grupos que vão desde católicos (que se sentiram ofendidos com um anúncio anterior da Benetton que ridicularizava a imagem clássica de Maria segurando o corpo de Jesus Cristo após sua crucificação) a ativistas da AIDS manifestaram sua indignação. As conceituadas revistas de moda Elle, Vogue eMarie Claire recusaram-se a publicá-la e pediram a seus leitores um boicote à marca Benetton.
Mãe e filho. Acima, Kay Kirby, a mãe de David, mostra uma foto do filho feita pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio, antes da AIDS cobrar o seu preço. “Nunca tivemos nenhum receio em permitir que a Benetton usasse a foto de Therese em seu anúncio”, diz ela. “O que realmente mexeu com todos foi o fato da Benetton colocar um pouco do seu dinheiro em algo que as pessoas, até então desinformadas, supunham revoltante. Elas não sabiam nada da nossa família ou sobre quem era o David. E nem imaginavam por que ele ficou com esse aspecto cadavérico antes de morrer”, disse, descrevendo um terrível sintoma da doença. “Nós sentimos que era a hora das pessoas verem a verdade sobre a AIDS.” “E se a foto fosse útil para a Benetton, tudo bem, seria a última chance das pessoas verem o nosso amado filho. Uma forma de mostrar e registrar que ele esteve aqui entre nós.”
Pai e filho. Acima, Bill Kirby tenta consolar seu filho, que está morrendo. “No dia em que David morreu, diz Therese, eu estava visitando Peta. Foi no período da manhã e eles vieram para falar com Peta, para que ele fosse ficar com o David. Peta me levou com ele. Fiquei fora do quarto, fazendo outras coisas, quando a mãe veio e me disse: ‘Nós gostaríamos que você fotografasse as pessoas se despedindo do David’. Entrei e fiquei ali, no canto do quarto, quieta e quase paralisada. Fotografei tudo o que aconteceu em seguida. Só depois me dei conta de que algo verdadeiramente incrível tinha se revelado na minha frente.”
Momentos Finais. Acima, outra imagem de Frare que registra os momentos finais da vida de David Kirby, com Peta, seu pai Bill e sua irmã Susan. “Logo no início”, diz Frare sobre seu trabalho na casa Paster Noster, “eu perguntei ao David se ele se incomodava em ser fotografado, e ele me respondeu: ‘Isso é bom, desde que não seja para lucro pessoal.’ Até hoje eu não cobro ou recebo nenhum centavo pela imagem.” David era um ativista, e queria passar a informação para o mundo de como a AIDS estava devastando as famílias e as comunidades. “Honestamente, eu acho que ele estava muito mais em sintonia com o quão importante as fotos poderiam se tornar.” E conclui: “Na época, eu pensei: quem é que vai ver essas imagens?”. Nos últimos 20 anos, segundo algumas estimativas, mais de 1 bilhão de pessoas viram a fotografia de Frare publicada na revista Life, no anúncio da Benetton, e em centenas de jornais, revistas, canais de TV e ilustrando histórias – de todo o mundo – da própria foto ou das controvérsias que a cercaram depois.
Força interior. ”Peta era uma pessoa extraordinária”, diz a fotógrafa. Vinte anos depois, o carinho com que fala é notável. “Ele estava lidando com todos os tipos de dualidades em sua vida – era meio nativo americano e meio branco, um atendente e um cliente do Pater Noster House, uma pessoa que andava na linha entre os dois sexos – mas foi muito, muito forte.”
Sozinho. Acima, Peta no sofá da casa alugada pelo hospital Pater Noster House. Após a divulgação do polêmico anúncio, a Benetton fez uma doação para o hospital, que utilizou uma parte da quantia para mobiliar esta casa onde Peta e outros pacientes ficavam.
De volta à reserva. Ele nasceu Patrick Igreja, mas “Peta” foi o nome que adotou. Na foto, ele nada em um lago de Pine Ridge, Lakota, uma reserva indígena da Dakota do Sul, durante uma viagem que fez com a fotógrafa, em julho de 1991.
Cuidando de quem cuidou. Como a saúde de Peta deteriorou-se no início de 1992, Bill começou a dar-lhe assistência, da mesma forma que Peta havia feito com seu filho nos últimos meses de sua vida: falando com ele, segurando-o, tentando aliviar a sua dor e a solidão através de um simples contato humano. Os Kirby resolveram fazer o mesmo para Peta, ficando lá como se fossem a sua força e vitalidade que haviam se esvanecido. Kay Kirby diz: “Quando David estava morrendo e Peta estava nos ajudando, eu prometi a mim mesma que quando chegasse a sua hora – e todos nós sabíamos que ela chegaria – ligaria para dizer que estávamos indo para cuidar e ficar com ele. E foi exatamente o que fizemos.
Na cabeceira. “Frequentemente e por algum tempo, eu cuidei do Peta tanto quanto pude”, diz Kay Kirby. “Foi difícil, porque não podíamos nos dar ao luxo de estar lá o tempo todo. Mas Bill sempre ia nos finais de semana, e nós fizemos o melhor possível, no curto espaço de tempo que tivemos.” Na foto acima, Kay administra um medicamento por via intravenosa. No alto da cabeceira da cama de Peta vê-se um Ojibwe (teia dos sonhos), uma mandala de cura de origem nativa norte-americana.
Debilidade. Kay Kirby conta que quando a condição se agravou, no final de 1991 e começo de 1992, Peta se tornou um paciente muito difícil. “Ele foi muito claro e falava em alto e bom tom o que e quando queria. Durante todo o tempo que cuidei dele, só lembro de uma única vez em que ele gritou comigo, eu gritei de volta e saí do quarto.”
Fazendo o possível. Acima, Peta e Bill Kirby partilham um momento tranquilo no quarto. Bill e Kay Kirby eram, de fato, os pais da casa. “Meu marido e eu ficamos constrangidos, quando David foi atendido, no começo de sua enfermidade, em um pequeno hospital perto de nossa casa”, diz Kay Kirby. “Médicos e enfermeiras usavam luvas e aventais sempre que estavam ao redor dele, e até mesmo a pessoa que entregava os menus se recusava a deixar David ler um. Ela lia o cardápio para ele da porta. Prometemos a nós mesmos que iríamos ajudar outras pessoas com AIDS a evitar tudo isso, e nós nos certificamos de que Peta nunca passou por isso.”
De dentro para fora. “Eu já tinha trabalhado cerca de 12 anos para jornais, quando fui fazer a pós-graduação,” diz Therese, “e quando comecei o curso já estava muito interessada em documentar a AIDS. Claro que naquela época era difícil encontrar uma comunidade de pessoas com HIV e AIDS dispostas a serem fotografadas, mas quando me deram o OK, no Pater Noster House, eu sabia que estava fazendo algo que era importante, para mim pelo menos. Sinceramente, eu nunca acreditei que publicaria na Life, ganharia prêmios e me envolveria em uma controvérsia com uma empresa como a Benetton. No fim, a imagem de David foi vista em todo o mundo, mas não as outras que eu havia feito, com Peta, os Kirby e os funcionários do hospital. Elas ficaram esquecidas e perdidas.”
Exploração. “Na época em que o anúncio da Benetton estava circulando, e a polêmica sobre o uso da foto de David estava no auge, eu estava em frangalhos”, admite Frare. “Eu estava me despedaçando, mas Bill Kirby me disse algo que eu nunca esqueci: ‘Escute, Therese, o pessoal da Benetton não se aproveitou de nós ou nos explorou. Nós é que nos aproveitamos. Por causa deles, a foto foi vista em todo o mundo, e isso é exatamente o que o David queria’. Eu me agarrei a isso.”Acima, Bill Kirby e Kay, 1992.
Espírito Livre. Quando a polêmica com a Benetton finalmente acabou, Therese Frare foi fazer outro tipo de foto, em outro lugar. Foi de uma freelancer de Seattle para o New York Times, trabalhou para grandes revistas americanas e outras empresas de mídia. Enquanto isso, o mundo se tornou mais amigável e se familiarizou com HIV e AIDS. Muitos acreditam que a imagem de Frare foi um ‘longo’caminho para dissipar um pouco do medo e da ignorância voluntária que acompanhavam qualquer menção da doença. Barb Cordle, o diretor voluntário do Pater Noster House na época do tratamento de David Kirby, disse uma vez que a imagem registrada por Frare “tem feito muito mais para amolecer o coração das pessoas sobre a questão da AIDS do que qualquer outra coisa que eu já vi. Você não pode olhar para essa foto e odiar uma pessoa com AIDS. Você simplesmente não pode”. Therese Frare mudou, mas não deixou que o tempo apagasse suas lembranças. “Peta foi uma pessoa difícil em várias ocasiões, mas houve também uma grande dose de alegria no nosso relacionamento. Nunca conheci ninguém como ele. Ele foi único.” Acima, retrato de Peta em Pine Ridge, julho de 1991. Veja os trabalhos recentes da fotógrafa Therese Frare aqui.
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