Para pioneira em ligar zika a microcefalia, Brasil está perdendo tempo e situação é ‘de guerra’
- 15 março 2016
As sextas-feiras viraram os "piores dias da vida" da obstetra Adriana Melo. É quando ela recebe as grávidas que tiveram zika para as ultrassonografias que indicam se os fetos têm ou não algum sinal de alteração neurológica, em um hospital conveniado ao SUS em Campina Grande, na Paraíba.
Na maior parte das vezes, pode mandar as mulheres de volta para casa aliviadas, com o sossego de que está tudo bem.
Até que surja em seu monitor sinal das alterações que viu pela primeira vez em setembro do ano passado, e precise dar a notícia mais temida pelas grávidas enviadas à Clínica-Escola da Faculdade de Ciências Médicas – de que o bebê tem sinais de má formação neurológica.
"Não é fácil. A sensação é de que estou puxando o tapete de alguém", conta ela, que depois de dar a notícia se recolhe no quarto escuro de ultrassom para respirar fundo antes de receber as próximas pacientes.
Dra. Adriana, como todos a conhecem em Campina Grande, ganhou notoriedade depois de se tornar a primeira médica a identificar, em novembro, o vírus da zika no líquido amniótico de duas grávidas cujos fetos tinham microcefalia.
Ao longo dos últimos meses, a certeza de que a zika está por trás do surto de bebês que vêm nascendo com alterações neurológicas só aumentou – e a postura de alguns pesquisadores que colocam em dúvida esta relação, ou consideram excessivo o alarme gerado pelo governo, a tira do sério.
"Eu sou médica baseada em evidências. Tem 17 anos que trabalho só com feto. Vejo 30 cérebros de crianças por dia. O que digo (a quem duvida) é – venham aqui. Passem um dia comigo olhando cérebros. E vocês vão ver que tem algo muito diferente acontecendo", afirma. "Eu tenho a visão de pesquisadora. Mas não podia ignorar a experiência deste momento."
Maçã de Newton
A obstetra diz que estamos no momento em que "a maçã caiu na nossa cabeça", comparando a ligação com a doença à revelação tida por Isaac Newton, que descobriu a lei da gravitação universal.
"Quando Newton desenvolveu suas teorias, primeiro a maçã teve que cair na sua cabeça. Estamos nesse ponto em que temos que elaborar as teorias e os trabalhos. Mas eu não podia esperar um tijolo cair sobre a minha cabeça para começar."
"Acho que estamos numa situação de guerra. Acredito piamente. Se fôssemos esperar até que se estabelecesse um nexo causal para alertar a população, quantas grávidas a mais não teriam bebês com microcefalia? Será que esse anúncio não foi capaz de salvar algumas vidas?"
Ela lembra o tempo perdido no passado até que se tenha levado a sério a Aids. "Quantos anos se passaram até que os cientistas quisessem acreditar no que estava acontecendo."
Ela considera que o país está "alarmando de menos".
"Estamos focando só em casos de microcefalia, quando há coisas piores acontecendo", afirma, citando casos recentes de pessoas que morreram com suspeita da síndrome de Guillain-Barré, doença autoimune que também vem sendo associada ao zika.
Alterações 'não batiam'
O surto de microcefalia teve a primeira aparição no consultório de Dra. Adriana em setembro do ano passado. Uma paciente que tinha tido exames normais com 12 e 16 semanas de gravidez voltou com 20 semanas, e uma alteração no cerebelo deixou a médica incomodada. Mais duas semanas se passaram e a cabeça do bebê não havia crescido nada, e já apresentava microcefalia, além de focos de calcificação em diversos locais de cérebro.
"Aquilo me deixou confusa porque o cerebelo alterado era mais para uma doença genética, e a calcificação era mais para uma infecção. As duas coisas juntas não batiam."
Isso foi numa sexta-feira de manhã. Na sexta à noite, seu celular acendeu com uma mensagem que estava circulando pelo WhatsApp, dizendo que Pernambuco estava com 60 casos de microcefalia com o mesmo padrão de cerebelo alterado e calcificação.
Em comum, as grávidas tinham tido manchas vermelhas no corpo no início da gravidez. A suspeita era zika.
"Liguei na hora para a minha paciente, e ela tinha tido zika com 8 semanas. Fomos atrás das outras pacientes e todas tinham o mesmo histórico", conta.
"E fui ligando os pontos. A gente tinha visto um aumento de casos de Guillain-Barré aqui na Paraíba em julho, que é uma doença neurológica. Ou seja, esse vírus deve ter uma predileção pelo sistema nervoso. Eu não tive mais dúvidas."
A obstetra começou a se mobilizar para encontrar um laboratório que pudesse testar o líquido amniótico de suas pacientes para a presença do vírus. Até que chegou à Fundação Oswaldo Cruz, no Rio.
"Para mim era muito lógico buscar uma resposta no líquido amniótico, porque em infecções como toxoplasmose e citomegalovírus, quando a mãe transmite para o bebê, esses agentes infecciosos ficam presentes na urina e no líquido amniótico", compara. "Na minha cabeça era muito simples. Não sabia que ia dar essa repercussão toda."
Mesmo tendo sido "precursora", Dra. Adriana continua batalhando para conseguir recursos para pesquisa. E continua se desdobrado para se sustentar e manter todas suas frentes de atuação – além de médica em um hospital municipal e na escola universitária, ela é sócia de três clínicas particulares e pesquisadora no Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (Ibesq).
"Não temos verba. Se a doença tivesse começado no Sudeste, provavelmente já haveria mais recursos para pesquisa. Sabemos que o Nordeste é desacreditado, apesar de ter excelentes pesquisadores."
Ela segue fazendo estudos em conjunto com pesquisadores de outras instituições, como a Fiocruz e a UFRJ. Mas pleiteia verba para uma pesquisa mais ampla que acompanhe grávidas que tenham zika a partir da doença até o nascimento, e o desenvolvimento de casos de microcefalia – e que foque também nas crianças que nasceram saudáveis para acompanhar seu desenvolvimento.
"Não sabemos ainda se esses bebês podem ter um déficit auditivo, uma crise convulsiva, um déficit visual", preocupa-se.
'Síndrome da zika congênita'
Ao lado de outros colegas, ela defende que se deixe de descrever o que o Brasil está testemunhando como um surto de "microcefalia" apenas, e que se passe a falar em "síndrome da zika congênita". A expressão síndrome é usada quando há um conjunto de repercussões associado a uma causa.
"Temos visto uma variação muito grande. Há desde casos em que a cabeça do feto é menor e há pontos isolados de calcificação até padrões mais graves, com a ausência de estruturas do cérebro – como o tálamo ou o tronco cerebral, que é a estrutura responsável pela vida", explica.
"Vemos também casos de artrogripose, quando há uma contração da musculatura e das articulações. Nos casos mais graves, os bebês, quando nascem, terminam indo a óbito com pouco tempo de vida", lamenta.
Mas o problema está longe de ser apenas médico. É também social. A maioria das famílias atingidas é de baixa renda, e o atendimento demanda um forte empenho de assistência social.
"As diferenças sociais estão muito evidentes nessa tragédia. A grande maioria dos casos é das periferias ou de cidades pequenas, onde sabemos que há mais problemas sanitários, falta de abastecimento, falta de tratamento de esgoto", afirma.
"Essas populações são mais castigadas. As mulheres não têm acesso a repelente, não podem colocar uma tela (para proteger contra mosquitos), muito menos dormir com ar-condicionado. E muitas vezes não têm entendimento da gravidade da situação. A preocupação é outra. Pode ser que tenham dificuldade até de comer. Entre comprar o repelente de R$ 50 e uma refeição, é claro que vão preferir uma refeição."
Dra. Adriana tem dormido pouco, sacrificado a vida familiar, pulado fins de semana – e continua temendo as sextas-feiras, quando segue recebendo mulheres com malformações nos bebês que carregam em suas barrigas, e tem que ser a porta-voz do impensável.
"O que me motiva", suspira, "é parar de dar essas notícias."
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