Dados Profissionais - O Caso “Anna O.”
Bertha Pappenheim (1859-1936), mais conhecida como Anna O., era neta de um personagem importante do gueto judeu de Pressburg e havia herdado uma grande fortuna. Seu pai era um rico comerciante de cereais em Viena e sua família pertencia a uma comunidade judaica estritamente ortodoxa. Sabe-se pouco sobre sua infância e adolescência. Ela falava inglês fluentemente, lia francês e italiano e levava a vida habitual das jovens vienenses da alta sociedade, praticando esportes ao ar livre, sobretudo a equitação.
Ao nascer, seus pais já tinham uma filha de dez anos que morreu quando Bertha contava oito anos, e haviam perdido a segunda aos quatro anos. Um ano após o nascimento da paciente, nasceu seu irmão caçula, que segundo os dados aportados por Lucy Freeman, foi criado como um príncipe. Bertha sempre foi muito apegada a seu pai que lhe ensinou a ler aos quatro anos de idade. A rivalidade com seu irmão aparece em seus depoimentos, quando se queixa de que seus estudos foram medíocres enquanto para ele, um estudante menos brilhante, não se pouparam quaisquer gastos. Queixava-se sobretudo, de que para ela, uma jovem inteligente e imaginativa, haviam sido destinados o piano e os bordados.
Além das dificuldades de relacionamento com o irmão, Bertha não se dava muito bem com sua rígida genitora, mas devotava ao pai que a mimava, um amor verdadeiramente apaixonado. Jamais havia se enamorado, o que pode ser explicado pela intensa fixação paterna. Apresentava ainda uma obstinada e pueril oposição às prescrições médicas e à religião.
Seu temperamento forte e altivo aparece numa frase escrita em 1922, "se houver justiça no mundo de amanhã, esta será: as mulheres farão as leis e os homens trarão os filhos ao mundo". Sua dificuldade de identificação feminina é revelada pelo pseudônimo escolhido para assinar seus primeiros livros, Paul Berthold (tirado de suas próprias iniciais B. P., invertidas), Berthold é também a versão masculina de seu nome. Outra de suas frases que assinalam sua insatisfação com o papel feminino é: "...Devido à natureza das coisas as meninas são as que sofrem, os meninos são os que aproveitam a vida".
Segundo Breuer, Anna O. tinha 22 anos quando adoeceu em 1880. Era uma jovem inteligente e criativa, ainda que caprichosa e obstinada. Havia um grande contraste entre os anseios da paciente e a vida monótona que levava em casa. Isso a conduzia a um mundo de fantasias, histórias que inventava para si mesma e que se constituíam no que ela denominava seu "teatro privado". Entretanto, tais devaneios não comprometiam sua vida cotidiana e sua família não estava a par do que lhe ocorria.
De julho a dezembro de 1880, Anna cuidou de seu pai que apresentava uma doença pulmonar grave. Passava as noites à sua cabeceira e dormia um pouco durante a tarde. Ficou tão extenuada que foi preciso mantê-la afastada de seu pai. Nessa época, apresentou acessos de tosse e períodos de sonolência e inquietação que duravam toda a tarde. Estes sintomas, entretanto, não chamaram a atenção da família, nem da própria paciente. Em dezembro, ficou acamada e começou a apresentar uma série de sintomas, estrabismo, paralisias, contraturas e zonas de anestesia cutâneas. Falava de forma quase incompreensível, uma mistura de quatro ou cinco idiomas. Às vezes se comportava normalmente, mas parecia deprimida: outras, mostrava-se caprichosa, inquieta e dizia ver serpentes negras. Nesse momento, Breuer foi chamado para tratar a paciente. A paciente passou a falar com seu médico em inglês, idioma que só ambos conheciam, mas entendia tudo o que lhe diziam em alemão. À tarde, caía em um estado de sonolência que denominava de "clouds" (nuvens) e parecia em transe hipnótico. Breuer a visitava nessas ocasiões e ele lhe contava seus devaneios, geralmente histórias de uma jovem ansiosa ante a presença de pessoas enfermas. Quando despertava, sentia-se aliviada. Ela própria deu a estas conversas com Breuer, o nome de "talking cure" (cura pela palavra) e "climney sweeping" (limpeza da chaminé). Em março, estava bastante melhor, mas no dia cinco de abril a notícia da morte do pai causou-lhe um grande choque. Os parentes havia lhe escondido a verdade acerca do estado de seu pai e ela reagiu muito mal a isso. Dizia que lhe haviam roubado seu último olhar e suas últimas palavras. Passou dois dias em estado estuporoso e recusava-se a falar com os parentes, alegando não entender sua língua nativa. Breuer era o único que aceitava e reconhecia, chegando a ter que alimentá-la.
Dez dias após, Breuer teve que viajar e outro médico foi chamado. Anna comportou-se como se não o enxergasse. O médico tentou fazer-se notado, soprando-lhe a fumaça do cigarro no rosto. Ao que a paciente reagiu com uma crise de raiva e ansiedade. Quando Breuer retornou, passou a hipnotizá-la e ela lhe falava sobre as visões que a perturbavam, método que a deixava mais calma e aliviada. Outro dos sintomas apresentados era a impossibilidade de beber água, a paciente vivia de sucos e frutas. Certo dia, durante a hipnose, contou a Breuer sobre o início de seu sintoma. Havia visto o cão da governanta beber água em um copo dos que se usavam na casa, foi tomada de nojo, mas evitou falar com a senhora. Quando saiu do transe pediu um copo e bebeu normalmente. A partir de então, médico e paciente passaram a rastrear o início de cada sintoma e, um a um, eles foram desaparecendo. Em junho estava assintomática e recebeu alta. Alguns dias depois, voltou a ficar agitada e foi internada em um sanatório perto de Constam, na Alemanha. Permaneceu internada de 12 de julho a 29 de outubro de 1882 e tomou altas doses de cloral e morfina para aplacar as dores de uma suposta neuralgia do trigêmeo. Breuer não voltou a tratar dela e segundo os informes do hospital, era uma paciente difícil que costumava criticar a ineficácia da medicina em relação a seus padecimentos e que passava horas diante da fotografia de seu pai.
Após recuperar-se de sua doença nervosa, Bertha dirigiu, a partir de 1895, um orfanato, fez várias viagens aos Balcãs, Oriente Médico e Rússia para fazer investigações sobre o tráfico de escravas brancas e sobre a prostituição. Em 1904, fundou a Liga de Mulheres Judias e três anos após, um estabelecimento de ensino filiado a essa organização. Foi responsável também pela criação de casas de recuperação de prostitutas. Todo esse trabalho social fez dela a fundadora do serviço social na Alemanha e uma das primeiras mulheres a lutar pelos direitos femininos, no início do século. Morou com sua mãe até o falecimento desta e morreu solteira em Frankfurt, em 1936.
O que Breuer evitou dizer sobre sua famosa paciente foi que havendo lhe dado alta e estando prestes a viajar com sua esposa para as férias de verão, foi chamado às pressas à sua casa. Encontrou-a muito agitada, contorcendo-se com dores abdominais. Indagada sobre o que lhe passava, respondeu: "...agora é o filho de Dr. Breuer que está chegando". Assustado, Breuer retirou-se e entregou o caso a um colega.
Breuer era o protótipo dos antigos médicos de família, atencioso e capaz de passar várias horas à cabeceira de seus enfermos. Entretanto, ele nada sabia da sexualidade infantil, do complexo de Édipo e da transferência, que só foram descobertos por Freud muito tempo após o tratamento de Anna O. Mas ele foi o primeiro médico capaz de escutar os segredos de sua paciente. Mas do que julgar, se tais idéias eram absurdas ou não, ele ouvia, evitando o método da sugestão hipnótica utilizado na época por Charcot e seu discípulo, Pierre Janet. O desconhecimento dos fenômenos supracitados fez com que fugisse apavorado, diante da gravidez fantasmática de Anna O. Ele não entendeu o que se passara, achava que não fizera nada para que a paciente se apaixonasse por ele, além do mais: "...o elemento sexual parecia ausente nela", diz em seu relato do caso. Ele ignorava que, é sobretudo o não dito que faz presença e que é capaz de provocar as reações menos esperadas num relacionamento interpessoal. A contratransferência, que também é definida por Lacan, como a soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços e mesmo da insuficiente informação do médico, atuava em Breuer.
Ele foi imprudente o bastante, segundo conta Lucy Freeman, para levar sua paciente a passear pelo Prater, em companhia de sua filha. Inconscientemente, fazia com que ela se tornasse um membro de sua família. Não se sabe quais seriam as fantasias deste homem, cuja filha se chamava Bertha e cuja mãe, de mesmo nome, morrera ao dar a luz. Em uma apresentação pessoal para a Academia de Ciências, Breuer escreveu que sua mãe havia falecido na flor de sua juventude e beleza. Seus conflitos inconscientes, seu Édipo não analisado, funcionaram como ponto cego, fazendo com que ele não se desse conta do que ocorria.
Um fato relatado por Freud dá testemunho do que foi o caso Anna O. para Joseph Breuer. Certa vez, dez anos após o incidente, Breuer chamou Freud para examinar uma paciente sua. Tratava-se de uma jovem, "virgo intacta", que apresentava vômitos, amenorréia, obstipação intestinal, abdômen timpânico e distendido. A família relatou que quatro meses atrás, uma das irmãs da paciente havia se casado. Freud compreendeu que a moça, por inveja da irmã, reagira mediante uma identificação com sua situação de casada e fizera uma pseudociese. Entusiasmado com a presteza de seu diagnóstico, ele disse para o amigo: "estamos diante de uma gravidez histérica". A reação de seu colega mais velho foi surpreendente: pegou o chapéu e a bengala e retirou-se da casa sem ao menos se despedir. Era demais para o Dr. Breuer, a coisa se repetira. Ele também sofria de reminiscências.